Próxima aventura: ficar em casa

Sou um sujeito sortudo. Ou melhor, talvez seja competente o suficiente para que a vida me faça um sujeito sortudo. Prefiro pensar assim para fins de: ~aumento de auto-estima~. Auto-enganar-se periodicamente faz bem, muito bem. Afinal, o universo conspirou para que eu fosse leonino, então que saiba lidar com sua criação. E leoninos são mestres em distorcer a realidade. Ampliamos trechos selecionados de um grande filme e projetamos insistentemente no alto dos prédios e dizemos “olha o que eu fiz”. Nunca cessamos de nos comportar como crianças de 3 anos.

Nos últimos tempos tive que lidar com uma difícil decisão: aceitar um (bom) trabalho no Brasil ou continuar viagem. Por diversos motivos, aceitei a primeira opção como destino dos próximos anos. Foi um embate interno apertado. De qualquer maneira, a China, a Mongólia, o Tajiquistão, tenho certeza, todos eles podem esperar um pouco mais.

“Mas você vai voltar depois de dois anos e vai arranjar emprego como? Vai ter que voltar a analista, vão baixar seu salário, vai estar fora do mercado”. Não aceitei a derrota certa como futuro e acho que apostei corretamente. Pode ser sorte mas, bico calado, não contem isso a um leonino.

“Olha o que eu fiz”. Olha. Um risco no mapa.

mapa final da viagem

Viajar pelo mundo é uma grande aventura. Voltar para casa pode ser também.

O blogue continua.

Esse papo chato de viajantes

Nômades, viajantes, backpackers, globetrotters a pilha de novas denominações para quem opta por anos sabáticos ou trabalho à distância cresce a cada dia. Com elas, as associações simplistas com uma certa geração Y, Z ou qualquer outro botão de um console Nintendo. Gerações essas que, por serem superiores a você, não pensam em dinheiro e sim na felicidade, no valor da experiência, no amor e as borboletas do Laos.

Por que será que a nossa geração não pensa tanto em dinheiro? Talvez por que não precisamos pensar, certo? Mas não. Os tais artigos, geralmente em formatos de listas (ex. 11 coisas que…), creditam isso a um desprendimento incomum do viajante, uma espécie de superioridade moral digna de um monge budista.

Balela. Viajar pode ser mais barato do que pensamos antes de sair de casa, mas não é propriamente barato se você largou o seu emprego ou não guardou nenhum dinheiro para isso.

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Wanted

Acabei de entrar correndo em um restaurante chique. Pedi um iogurte grego com frutas. A primeira coisa que veio aos olhos. Zero vontade. Ainda não sei o que fazer.

Hoje despertei tarde, depois de tantas noites mal ou não dormidas em que passei andejando por caldeiras e vulcões de Java (merecerão um texto à parte). Tomei café da manhã, que teve gosto de almoço porque veio com arroz, e saí com a moto alugada nesses dias para vaguear por uns campos de arroz aqui perto. Gosto de terraços de arroz, falei?

Há uma rua principal no centro de Ubud, em Bali, que é uma cilada para turistas. Alguns trechos se tornam, de hora pra outra, via de mão única. Vi os sinais mas os outros motoristas continuavam a cada um desses trechos ignorando o aviso, coisa que não é de impressionar quando se trata de Indonesistão. Resolvi seguir e a Sorte, entidade essa que distribui desgraças e bilhetes premiados dia sim e dia sim, me regalou um policial em busca de muitas coisas, como todo ser humano, e também uma pequena fatia do meu orçamento. Enquanto passava o sermão, o filme rodava na caixinha, “ele vai pedir propina”.

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A moral dos trens

O sistema de trens na Índia é super complexo. De qualquer maneira, funciona bem, considerando um país de mais de 1 bilhão de pessoas. Aprofundei-me na arte de entender esse sistema. Fui apresentado às Indian Railways há 6 anos atrás, na minha primeira visita à Índia. Dessa vez, foi só relembrar, refazer cadastros e instalar aplicativos. O fluxo de aprovação é burocrático e tenho ajudado quem tem dúvidas nos albergues em que fico. Mesmo um expert no assunto pode falhar. E quando falha, vale muita criatividade considerando os limites de cada um – os meus são bem elásticos.

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Veja bem, a Índia não é um país fácil e é o que faz de lá um “ame ou odeie”. Quem atinge a superfície, vê primeiramente o lixo que se espalha nas ruas, os riachos de esgoto e extrema miséria. Com um pouco de paciência e bom humor, descortina-se uma malha muito mais complexa que a ferroviária. A das regras não ditas. A mais conhecida e incompreendida delas: o sistema de castas. Explicar isso a um estrangeiro é difícil mas os próprios indianos têm dificuldade de entender toda a complexidade na imensidão de castas, sem começar a falar de religiões e línguas em que vivem. A Índia é uma colcha de retalhos, é muitas nações em uma só e acabou sendo desenhada e redesenhada durante a história, desde as invasões arianas até os ingleses e as posteriores separações do Paquistão Leste (hoje, Bangladesh) e oeste (o Paquistão Paquistão).

Existe um trecho de “O Tigre Branco” do escritor Aravind Adiga, que ajuda a explicar, com boas doses de ironia, um pouco dessa dinâmica que foi mudando no último século.

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Viajando com transporte gratuito

Em fevereiro de 2006, marquei uma viagem com amigos para um vilarejo no sul da Bahia. Não vingou. Um a um começou a arranjar empregos e minhas férias estavam fadadas a serem mais do mesmo, no Rio.

Uma semana antes de ficar de pernas pro ar por 20 dias, o travel bug começou a incomodar e entrei no site de algumas companhias aéreas. A Gol estreava um voo internacional a um preço baixíssimo. O destino: Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. A chamada piscava em um banner animado no topo da página.

Bolívia? Queria ver o deserto de sal, claro. Mas e o resto? Não sabia muito. Comecei a entrar em vários sites e pegar dicas de viagens. No dia seguinte tinha a passagem comprada por impulso e um roteirinho que virei a noite fazendo.

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Elogio ao ócio e à pescaria

No Sri Lanka, estou entregue à auto-indulgência. Perdão pelos dias sem fazer nada, pelo estouro no orçamento, pela preguiça, pela gula, pelo livro não lido, pelo post perdido, pela cidade não visitada. Perdão aos homens de preto por não ter feito a minha parte e, mesmo que não o receba, não me importo. A clemência, aqui e agora, vem automática, porque tem praia e água de coco por perto. Eu me perdoo.

É nessa que me dei ao direito de experimentar a inércia extrema. Ir até a praia e voltar para comer, dormir, balançar pro céu em uma rede.

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Natal em Goa

“Se alguém lançar uma pedra, em qualquer lugar de Goa, é quase certo que vai acertar num porco, numa igreja ou num Sousa” ~ sabedoria popular

Na Europa, a região que ficou conhecida como a que provia especiarias por meio de Portugal, para depois cair na graça dos hippies e, depois, pelos clubbers com suas raves intermináveis, Goa hoje tem apenas uma cena decadente de cada um desses períodos. Destino predileto dos russos e britânicos exilados do frio e jovens israelenses, que viajam em bando logo após terminarem seus serviços militares, Anjuna e algumas outras praias ao norte do estado ainda concentram as festas. Ali, os senhores enrugados ostentando tranças, imensas tatuagens, manchas cancerígenas, tanguinhas e tantos outros artigos ridículos quanto couberem na imaginação, se misturam a grupos de indianos que estão bebendo pela primeira vez e que se jogam desorientados nas ondas sem saber muito como funcionam aquelas águas escuras. Debutam nos caixotes e na forte correnteza anunciada em bandeiras vermelhas, muitas vezes completamente vestidos. Não deixa de ser divertido ficar observando famílias inteiras sendo jogadas de volta à costa, tossindo água, comendo areia. As mulheres vão com seus saris. Os homens, com roupas que vão de simples cuecas velhas a trajes completos: camisas sociais e calças jeans. Riem e aproveitam aquilo como o paraíso. E é.

O paraíso é isso. Beber e entrar em uma máquina de lavar.

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Gustavo, quanto você tá gastando?

Update: o post a seguir considera valores de dólares da época (ah que nostalgia!). Mesmo assim, vale notar que o dólar aumentou muito para vários países. 

No início desse texto, vou mostrar um número grande e você vai abrir a boca e falar: “meu deus, Gustavo realmente assaltou as velhinhas na porta da igreja e não quer abrir o jogo”. Logo depois, vou publicar o que eu recebi nesse tempo e como “anulei” esses gastos e você pode chegar à conclusão de que “ei, pera, acho que também posso fazer isso aí”. É o que eu espero. Como já disse anteriormente, viajar não é necessariamente caro. Depende dos seus objetivos, regiões pelas quais quer passar e como quer viajar, principalmente no que se refere a (parafraseando Dilma) conforto. A pergunta mais proferida precisa de resposta. E como muitos outros blogues de viagem fazem, “abrirei minha planilha”.

Antes de tudo, é importante deixar claro que esse dinheiro foi um investimento. Enquanto uns preferem comprar o carro do ano, eu prefiro ter experiências pelo mundo durante esse tempo. As duas pós-graduações que fiz anteriormente e que tiveram um preço altíssimo no meu orçamento não me ensinaram nada que chegue perto ao que eu tenha aprendido aqui. Viajar por um longo tempo também é uma abertura para que você repense sua vida e estude determinados assuntos por conta própria – e aí você faz uma espécie de “universidade ambulante”. Mas vamos às contas.

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Um ano viajando

Não, não quero voltar ainda. Faz exatamente 384 dias em que eu saí do Rio para enfrentar o mundo, sem muitos planos e uma rota desenhada superficialmente. Aqui vão algumas estatísticas:

Tempo: 384 dias, ou 1 ano e 19 dias, ou 55 semanas, ou 9216 horas, ou 552.960 minutos, ou 33.177.600 segundos.

Distância percorrida: aproximadamente 55.000 km (já é mais que uma volta à Terra, que tem a circunferência de 40.075 km!).

Transporte: na maioria das vezes, ônibus (mesmo na Europa), mas peguei ao todo 5 voos curtos e baratos.

Comida: odeio cozinhar. Então costumo comprar coisas fáceis de fazer ou sair pra comer, uma das grandes falhas no meu orçamento. Sempre aceito quando alguém se dispõe a cozinhar. ;)

Acomodação: um pouco de tudo. Casa de amigos ou de pessoas que conheço no caminho, couchsurfing, dormitórios em albergues, aluguel de quartos (Airbnb). Acampar, só quando não tem outro jeito.

Países: nesta viagem, 25 países até agora.

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